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A decisão do governo de adotar licitação pública para portos privativos surpreendeu o empresário Eike Batista, cujo grupo planeja construir três terminais portuários para movimentar carga própria e de terceiros com investimentos totais estimados em US$ 3,9 bilhões.
A proposta do governo pode excluir da disputa o próprio idealizador do projeto. “Se sou dono da terra e do projeto não sou obrigado a vender nada. Uma licitação para hidrelétrica tem como base o curso de um rio que pertence à União, mas, na minha casa, faço o que eu quiser.
Será que voltamos a era da estatização?”, indaga.
Fonte:Valor Econômico (para assinantes)
Eike Batista é o mais rico e um dos mais criativos empreendedores brasileiros, sendo objeto de admiração e estudo por causa disso. Entretanto, nesse assunto, seus juízos e afirmações não procedem, por não terem amparo legal (constitucional), nem na política estratégica de uma nação, como demonstraremos a seguir.
A Constituição Federal é muito clara ao definir que o serviço público prestado nos portos é atribuição exclusiva da União. Como é em todos os países desenvolvidos, com exceção apenas do porto de Hong-Kong e de alguns pequenos portos na Inglaterra.
A União pode delegar a gestão dos portos públicos (os únicos que podem prestar serviço público) aos Estados, como os portos do Rio Grande (RS) e Paranaguá (PR) e a Municípios, como Itajaí (SC).
Quanto à operação (movimentação de cargas), a União ou os entes delegados podem fazê-la (e é o que ocorre) através de empresas privadas, exclusivamente, através de licitação pública.
Logo, não é absurdo, mas ao contrário é um preceito constitucional natural, licitar operações para prestação de serviço público, ainda que em terminais privativos.
Isso não tem nada a ver com a movimentação da sua própria carga, nos seus terminais privativos. Essa possibilidade continua garantida, bastando uma autorização da Antaq.
O Decreto, ainda em gestação no governo federal, não inventará um novo marco regulatório. Ele apenas consolidará e eliminará as ambiguidades provenientes da brecha – na minha opinião, incontitucional – que existe na Lei dos Portos (Lei 8.630/93), que criou a figura do terminal de uso privativo misto, para movimentar carga própria e de terceiros, que é a exceção da exceção à regra.
A regra e as exceções são muito simples de entender:
- sistema portuário brasileiro é atribuição exclusiva da União. O serviço público de movimentação de cargas de terceiros somente pode ser realizada nos portos públicos, sendo que a operação privada é permitida, via processo licitatório e todas as regras decorrentes;
- exceção para a movimentação de carga própria que, para atender às necessidades do produtor ou processador da carga, inexige licitação, bastando uma autorização da Antaq;
- dentro dessa exceção, para garantir a movimentação de cargas de terceiros (obviamente da mesma natureza da carga própria), em situações em que não há porto público nas proximidades da área de produção, os terminais de uso privativo misto poderão movimentar essas cargas, de forma acessória e não preponderante.
Então, no Brasil, como nos demais países desenvolvidos, quem controla e define estratégias para o sistema portuário é o Estado, através do governo federal ou dos entes delegados.
Não há liberdade para a iniciativa privada definir localização, quantidade e hierarquização dos portos; escolha de carga a movimentar (ou seja, escolha de clientes); definição quanto à continuidade dos serviços; e definição de tarifas, entre outros itens.
Quem define tudo isso, em todos os países desenvolvidos, é o poder público, em nome do interesse público.
À iniciativa privada cabe tão somente operar e, eventualmente, realizar a gestão do porto.
O Dr. Eike Batista, portanto, se quiser alterar o marco regulatório existente precisará realizar movimentação no sentido de mudar a Constituição Federal.
Não será um Decreto ou Resolução da Antaq, e nem mesmo a brecha de exceção da Lei dos Portos, que fará valer uma alteração como ele pretende, já que existem instituições que não permitirão que isso ocorra, como o Ministério Público, o Judiciário e, especialmente, o Supremo Tribunal Federal, todos guardiães da Constituição.
Quanto à preocupação em relação aos seus terminais privativos que estão em andamento, até onde sei, o Decreto não exigirá licitação para a operação de carga própria.
Entretanto, se ele mantiver a intenção de construir, junto ao terminal de carga própria, um outro para carga de terceiros, desde que isso faça parte do Plano de Outorgas da Secretaria Especial de Portos, não haverá problema.
Neste caso, a operação deste terminal terá que ser viabilizada através de licitação pública, para atender ao preceito constitucional já mencionado neste post.
Complementando o aqui exposto, sugiro aos leitores uma visita ao artigo do Dr. Delfim Neto, publicado no Valor Econômico, com o título “Sem licitação, não”.
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